10 maio 2010

Pois é Pra Quê? (Analisando Letras 1)


É com essa obra prima, que inicio hoje uma série de análises, de músicas que "batem forte" em meus ouvidos, mas que por razões as quais desconheço ou não me interesso, passam direto pela percepção da maioria das pessoas.

A Letra que segue abaixo é da Canção "POIS É, PRA QUÊ?" de SIDNEY MILLER, que tem sua gravação mais conhecida realizada pelo grupo MPB-4 no ano de 1971, no LP "DE PALAVRA EM PALAVRA", disponível para download aqui no blog.


Pois É Pra Que?

Sidney Miller

O automóvel corre a lembrança morre,
O suor escorre e molha a calçada,
A verdade na rua a verdade no povo,
A mulher toda nua mas nada de novo,
A revolta latente que ninguém vê,
E nem sabe se sente pois é pra que?


O imposto a conta o bazar barato,
O relógio aponta o momento exato,
Da morte incerta a gravata enforca,
O sapato aperta o país exporta,
E na minha porta ninguém quer ver,
Uma sombra morta pois é pra que?


Que rapaz é esse? Que estranho canto,
Seu rosto é santo seu canto é tudo,
Saiu do nada, da dor fingida,
Desceu a estrada subiu na vida,
A menina aflita ele não quer ver,
A guitarra excita pois é pra que?


A fome a doença o esporte a gincana,
A praia compensa o trabalho a semana,
O chopp o cinema o amor que atenua,
Um tiro no peito o sangue na rua,
A fome a doença não sei mais porque,
Que noite que lua meu bem pra que?


O patrão sustenta o café o almoço,
O jornal comenta o rapaz tão moço,
O calor aumenta a família cresce,
O cientista inventa uma flor que parece,
A razão mais segura pra ninguém saber,
De outra flor que tortura...


No fim do mundo tem um tesouro,
Quem for primeiro carrega o ouro,
A vida passa no meu cigarro,
Quem tem mais pressa que arranje um carro,
Pra andar ligeiro sem ter porque,
Sem ter pra onde pois é pra que?


A poesia desta letra, faz o ouvinte atento se posicionar ante aos fatos do cotidiano, lembrando que se trata de uma composição do final da década de 60, em meio a confusão imposta pela ditadura militar, com sua rígida censura, que não ficava restrita apenas ao campo artístico, mas também se estendia entre outras coisas às escolas.

Na primeira estrofe, o autor nos fala dos corre-corre causados por conta da Ditadura Militar ("O automóvel corre.." "O Suor que escorre...", dos protestos ("A Mulher toda nua") e da revolta de uma parte do povo, que se misturava ao conformismo de outra parte,ou se escondia em meio a essa outra parte ("A revolta latente, que ninguém vê..."), e questiona: Pra que?, afinal de contas ainda estava longe o momento de o país tomar outro rumo.

Na estrofe seguinte, uma série de fatores do dia a dia, mesmo atuais estão presentes, o imposto, a conta, o bazar barato ( hoje temos lojas de R$ 1,99), e no final um comentário sobre uma sombra morte que ninguém quer ver, remetendo diretamente ao assunto que volta na quarta estrofe: A morte.

Já na terceira, o assunto são os novos músicos (da época), e é feita uma reclamação para os que não estão contra a ditadura ("Seu rosto é santo, sua voz é tudo"..., "Saiu do nada da dor fingida...", "A menina aflita, ele não quer ver..."), que aliás foram muitos, os que cresceram artisticamente nesse período, justamente por saber não "falar demais", fato que eu particularmente não considero errado, afinal, cada um sabe de si. Mas discorre também sobre a tendência de virada musical, num país que tinha (e tem) a raiz no samba, inventou a bossa nova, e de repente se apaixonou pelas guitarras na fase do Tropicalismo, movimento esse aliás que discordava bastante do sistema,tanto que Gilberto Gil e Caetano Veloso,talvez seus maiores representantes acabaram presos e exilados.

Vemos na quarta estrofe, a declaração mais ousada da canção, quando o autor depois de colocar mais um pouco de cotidiano normal diz: "Um tiro no peito o sangue na rua, / A fome a doença não sei mais porque,/Que noite que lua meu bem pra que?". Neste momento, é preciso lembrar que, muitas famílias ainda procuram pelos corpos de pessoas desaparecidas, que foram exterminadas, pelo regime vigente, quase sempre por motivos que hoje consideraríamos fúteis, como por exemplo estar numa loja de departamentos falando mal dos políticos( na época podia ocorrer de, de repente, ser flagrado e preso por um policial a paisana, e depois interrogado e morto), afinal fazemos isso abertamente a todo instante.

Já na próxima estrofe, o assunto é Ciência e Tecnologia, quando o autor nos propõe pensar sobre os meios de extermínio em massa, que até hoje são estudados e produzidos com as frases: "O cientista inventa uma flor que parece, /A razão mais segura pra ninguém saber,/ De outra flor que tortura...", e com reticencias termina o trecho, sem o "Pra que?", tão óbvio é o assunto. Vale ressaltar aqui, a "famosa" Rosa de Hiroshima, lançada pelos Estados Unidos contra o Japão praticamente depois de a II Guerra já ter terminado em 06 de agosto de 1945, exterminando cidades inteiras em mais de um quilometro de extensão.

No final da canção, vem a crítica aos que não tem um objetivo, mas que correm atrás de um tesouro, um fortuna, sem pensar num amanhã melhor (isso principalmente para aquela época), pois de que adiantava (adianta) fortuna, trabalho, status, sem liberdade para se pensar, falar,fazer, ir e vir?


Por essa, e outras canções, temos de agradecer aos censores, que não tinham preparo, não eram maliciosos, ou que até mesmo eram contra a própria ditadura (acredito eu, e muito nessa hipótese), e se arriscavam,deixando passar, e automaticamente deixando divulgar, letras como essa que criticavam duramente o sistema vigente na época.


Para ouvir a música faça aqui o DOWNLOAD com MPB-4 (1971), ou faça o DOWNLOAD aqui com Sidney Miller (1968)


Até a próxima,

O Colecionador de Discos

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